domingo, 19 de outubro de 2008

A Dança das Cores

O túnel por onde haviamos descido desenbocava numa imensa caverna, encimada por um tecto abobadado altíssimo. Lá dentro encontravam-se inúmeras criaturas como aquela que servira de nosso guia, todas elas envergando as mesmas túnicas luminescentes cujo suave fulgor iluminava toda a caverna, na sua imensidão.
Saíramos do túnel para uma plataforma rochosa a meia altura da caverna, na qual havia  uma área que se assemelhava a um pequeno anfiteatro e onde se alinhava um grupo de criaturas, que parecia ignorar a nossa presença, tal a intensidade de concentração que transparecia dos seus rostos invulgares. 

O nosso guia encaminhou-nos para um nicho na parede rochosa, perto da boca do túnel, mas do lado oposto àquele onde se encontrava o grupo do anfiteatro. As restantes criaturas presentes encontravam-se dispersas em pequenos grupos, pelo solo da caverna em nichos nas paredes íngremes da mesma, como aquele onde fôramos colocados eu e Pelarus, ou noutros nichos dispersos a várias alturas das paredes íngremes.
Após se assegurar que estávamos convenientemente instalados e de que entenderamos que não deveríamos abandonar aquele posto, voltou-se com um ligeiro sorriso e foi tomar o seu lugar junto do grupo do anfiteatro, assumindo como eles uma atitude de profunda concentração.

Passados alguns momentos a luminescência das túnicas diminuiu, o que levou a que a imensa caverna ficasse numa semi-obscuridade, enquanto um som cavo e crescente se ouvia, fazendo vibrar o âmago das nossas almas. Pelarus procurou a minha mão com a sua e ficámos segurando com firmeza a mão um do outro. Os nossos olhos esbugalhavam-se com o que se desenrolava perante nós.

Um fulgor, de início mais fraco mas depois ganhando progressiva intensidade, provinha do tecto abobadado da caverna. Sete criaturas pairavam no ar junto ao tecto, ao contrário das restantes que já viramos, estas apenas se vestiam com um fato único da mesma matéria luminescente que as cobria por completo, à excepção da cabeça, como os outros. Agora podíamos observar a sua fisionomia, já que estes fatos aderiam ao corpo como uma segunda pele e, tal como eu suposera, os seus corpos eram esguios, com membros longos, em que os braços se prolongavam em mãos finas de dedos compridos e delicados. Contudo não se notava alguma particularidade anatómica que pudesse indicar um dos sexos humanos. Os seus peitos eram desprovidos de seios e no baixo ventre não se notava algum vulto que indicasse a presença de genitais masculinos. Eram assexuados?!

As criaturas levitantes pareciam massajar, ou acariciar, a abóbada da caverna, o que fazia com que desta brotasse uma substância amorfa e moldável, que elas puxavam e esticavam enquanto iam descendo em direcção ao solo. Assim uma tela imensa e branca se formou, quando as criaturas atingiram o chão da caverna onde, com idênticos gestos massajadores, firmaram a tela. Depois, para nosso maior deslumbre, passaram a voar em vólutas e piruetas, como se estivessem num ambiente sem gravidade. Simultaneamente os seus factos iridizavam em todas as cores do espectro visual.

No decurso da dança aérea, por vezes os bailarinos avançavam contra a tela e puxando-a, empurrando-a, perfurando-a, iam-na moldando. Em simultâneo os seus fatos iam tomando uma cor que era transmitida à área trabalhada pela dançarina, levando a que a inicial tela branca se tornasse num objecto multifacetado e multicor. Por vezes um deles rasgava um pedaço que esticava até ao chão ou até a parede onde o fixava com os mesmos gestos de fricção das mãos contra a rocha.

Perante nós uma imensa teia multicor ganhava forma, enquanto o som cavo de início ia modulando em cambiantes tonais, mais ou menos graves, soando como uma longa e arrastada melodia.
Através dos rasgões na superfície da tela, os dançarinos entraram naquilo que se assemelhava a um casulo, que tinham moldado no centro da imensa teia. O coro no anfiteatro, ao nosso lado, baixou a intensidade do seu cântico até ao silêncio, enquanto do interior do casulo um cântico mais agudo e mais intenso se elevava.

Com o aumento da intensidade do cântico o casulo iluminava-se mais ainda, tomando uma forma esférica e ganhando as cores e padrões do globo terrestre, libertando-se das mangas de tela que o prendiam às paredes e ao chão da caverna.
Então o coro da plataforma entoou novo cântico, juntando-se em contraponto com o cântico dos dançarinos no interior do globo, que começou a girar sobre si, tal como a Terra.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Por Grutas e Cavernas

Desmontamos dos nossos corcéis, à entrada da enorme gruta e avançámos para o seu interior.

A caverna alongava-se na forma dum túnel e, quando os nossos olhos se habituaram à semi-obscuridade, pudemos distinguir a alguma distância da entrada um vulto humano.
Era alguém com estatura muito elevada e esguia, vestido com uma longa túnica, que lhe cobria completamente o corpo, mesmo o longo pescoço, deixando apenas a cabeça descoberta. Uma cabeça calva e alongada, de feições humanas, mas em que a parte do crânio era dum volume superior e mais alongado que o comum entre nós, humanos. Os seus olhos eram grandes, alongados e dum olhar intenso e profundo, contudo sem nenhum aspecto de agressividade. Não via no personagem algum sinal que indicasse não ser humano, embora em nada se assemelhasse a qualquer um de todos os tipos de humanos que eu já vira.

As mangas da túnica eram igualmente longas, escondendo-lhe por completo as mãos. Era uma peça de vestuário invulgar, pois dela parecia e emanava mesmo, uma leve luminescência suavemente esverdeada, que se reflectia nas paredes da gruta.

Embora de fisionomia esguia, tudo na sua figura ostentava uma dignidade e majestade harmoniosas e benevolentes. Sorriu-nos com um gesto convidativo a que se lhe juntassemos e, ao ver que assim o faziamos, virou-se e dirigiu-se para o interior da gruta.

Aquilo não era andar, aquilo era deslizar! O seu caminhar era tão elegante e ao mesmo tempo tão rápido, pois pela sua altura fácil seria adivinhar umas longas pernas debaixo daquela túnica, que eu e Pelarus tivemos de estugar o passo para a acompanharmos.

Eu falei «a acompanharmos», contudo nada parecia indicar o sexo do nosso guia. Toda a figura era andrógina no seu aspecto e modos. E demais nem ainda lhe ouviramos a voz, bastara apenas a sua postura e o modo de comunicar com gestos brandos, para que a seguissemos.
Mas seria isso mesmo relevante? A determinação do sexo da criatura que encontraramos e que acompanhavamos? Creio que em nada seja relevante para a narrativa, ou para o que se pudesse vir a passar.
Constrangido que estou pela gramática portuguesa, enquanto escritor lusófono, irei livremente optar por ambas as designações, tanto feminina como masculina, nas referências à criatura.

E o caminho se fazia longo, sempre descendo, cada vez mais para o interior. Túneis que desembocavam em cavernas vazias, umas mais amplas que outras, mas onde em todas a leve luminescência da túnica do nosso guia revelava as belas formações geológicas de estalagtites e estalagmites.
Numa ou noutra gruta encontrámos pequenos lagos, ou mesmo ribeiros escorrendo céleres para desaparecerem por algum túnel escavado ao longo de séculos e séculos.
Noutras ainda podiamos ver a iridiscência de cristais de rocha, que se projectava em miríades de pontos multicolores pelas paredes rochosas. Efeitos dignos dos mais elaborados vitrais, que alguma vez a criatividade humana pudesse conceber.

Por fim, a insigne criatura que nos precedia, voltou levemente a cabeça na nossa direcção e pela primeira vez lhe ouvimos a voz: "Estamos chegando." Anunciou com um brilho doce no olhar e um leve sorriso nos finos lábios da pequena boca. Eu quase tropecei num afloramento rochoso e Pelarus agarrou-se ao meu braço, como se estivesse tentando confirmar que não sonhava.

A voz era suave como um murmúrio, mas perfeitamente audível. E, mais intrigante ainda, parecia ressoar dentro de nós; como se as nossas almas a ficassem repetindo e repetindo.